Houve um
tempo em que caminhar era tarefa simples, os passos
cadenciavam-se naturalmente sobre as ruas retilíneas, sobre as
declividades, sobre os corpos desfalecidos de goiabas maduras no
asfalto, meu corpo era um trator, uma máquina de moer milhas.
Sentava-me
à mesa com minhas meias frias, pratos de louça, talheres de
plástico e deglutia uma refeição sóbria juntamente com sonhos,
planos e perspectivas que se colocavam no caminho. Da radiola da
sala ecoava um som fraco de violino e saxofone que logo se
transmutaram em estrondos de terremotos e solavancos, estilhaçando
as taças de vidro e gotas de vinho que continham. Nada restava do sol além dos bolinhos de madalena sobre a mesa.
Os
jornais falavam sobre ortodoxia econômica, controle da balança de
câmbio, inelasticidade do mercado de insumos, de minha parte (mesmo
tendo passado anos na faculdade de economia) nada fazia
sentido, só a comida do prato que me escorria por entre os dedos das
mãos, como a liquidez monetária de que falava o artigo de capa
do folhetim de sábado, como as gotas de suor que me acompanhavam
após uma noite de sono extremamente curta e perturbada por pesadelos
onde me perseguiam vendedores de seguro, gerentes de banco e a
ausência dos móveis de minha casa que começavam a se desfazer.
Dedos ou dados, todos eram indicadores.
As tardes
então eram todas frias e compridas, não em termos climáticos, mas estadísticos, dos sonhos do passado só sobrara a capacidade de sonhar,
escondida entre os vãos do assoalho da sala de estar e temente da
possibilidade de novos abalos sísmicos. Setenta anos eu tinha,
embora só tivesse vivido vinte e nove e os vincos em minha testa
acentuavam-se independentemente de minha vontade, disposição de mudança, ou da melhora de minha artrite.
Nunca
havia sido materialista, nunca até então havia querido mais do que
uma pequena casa, com um jardim de frente e uma menininha de
vermelho, nada além do direito de todos terem uma pequena casa, com
um jardim de frente e uma menininha de vermelho (como no poema de
Vinícius de Moraes), mas agora tinha que me contentar com o gosto
amargo da esperança que explodia, convulsionada, inundava minha
cavidade bucal bloqueando a entrada de minhas glândulas salivares,
deslocando minha arcada dentária, cerrando meus lábios e pondo em
meu rosto uma expressão séria.
Deitava-me
em frente a estátua de homens que marchavam a cavalo. Sob o sol nu, repousava nos ladrilhos fétidos da praça central, clamando por um Teseu, Aquiles, ou qualquer outro ser humano de fibra, paciência,
orgulho e um tanto de boa disposição, por qualquer bom sentimento
que me colocasse à frente da guerra de Troia. Eu era a goiaba
esmagada no asfalto, o pescoço dado à guilhotina, a vibração
bucal das cordas que morria em tons e semitons.
Os
letreiros luminosos da cidade formavam anagramas, “cadey”,
“dacey”, “aceyd”, todas elas mensagens subliminares de minha
loucura que começavam à tomar forma, previsões paranoicas, planos
de atentados terroristas, enquanto um vizinho me alertava sobre a chuva
iminente e sobre o risco de ficarmos encharcados andando dessa forma à esmo. Estaquei em frente à uma loja cuja placa na porta de frente indicava
“Closed” e que me convidava a entrada.
Do
interior do prédio ouvia-se longínqua uma melodia misteriosa,
familiar, errante, a nona sinfonia de Beethoven que me era agora
ao mesmo tempo os restos de bolinho de madalena e uma fenda mortal
entre dois mundos, que projetava na mente esferas azuis celestes e me
mantinha estático, ditando o ritmo das sístoles e diástoles que
teimavam em crepitar como restos de lenha calcinada.
Sob a chuva compreendi os limites de uma vida austera, a profundidade das bocas de lobo que infestavam a cidade, o destino hermético de José Arcádio Buendía que se colocava para mim como trajetória única, pensei que solidão, se fosse mesmo um conceito preciso, chamar-se-ia liquidão, pois no fundo, nada mais solitário do que uma vida sem paz. Abracei-me à um poste e adormeci, luzes de sirenes bombardeavam minhas costas enquanto eu, por minha parte, germinava em frente ao espelho.