quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Terminal

Houve um tempo em que caminhar era tarefa simples, os passos cadenciavam-se naturalmente sobre as ruas retilíneas, sobre as declividades, sobre os corpos desfalecidos de goiabas maduras no asfalto, meu corpo era um trator, uma máquina de moer milhas.

Sentava-me à mesa com minhas meias frias, pratos de louça, talheres de plástico e deglutia uma refeição sóbria juntamente com sonhos, planos e perspectivas que se colocavam no caminho. Da radiola da sala ecoava um som fraco de violino e saxofone que logo se transmutaram em estrondos de terremotos e solavancos, estilhaçando as taças de vidro e gotas de vinho que continham. Nada restava do sol além dos bolinhos de madalena sobre a mesa.

Os jornais falavam sobre ortodoxia econômica, controle da balança de câmbio, inelasticidade do mercado de insumos, de minha parte (mesmo tendo passado anos na faculdade de economia) nada fazia sentido, só a comida do prato que me escorria por entre os dedos das mãos, como a liquidez monetária de que falava o artigo de capa do folhetim de sábado, como as gotas de suor que me acompanhavam após uma noite de sono extremamente curta e perturbada por pesadelos onde me perseguiam vendedores de seguro, gerentes de banco e a ausência dos móveis de minha casa que começavam a se desfazer. Dedos ou dados, todos eram indicadores.

As tardes então eram todas frias e compridas, não em termos climáticos, mas estadísticos, dos sonhos do passado só sobrara a capacidade de sonhar, escondida entre os vãos do assoalho da sala de estar e temente da possibilidade de novos abalos sísmicos.  Setenta anos eu tinha, embora só tivesse vivido vinte e nove e os vincos em minha testa acentuavam-se independentemente de minha vontade, disposição de mudança, ou da melhora de minha artrite.

Nunca havia sido materialista, nunca até então havia querido mais do que uma pequena casa, com um jardim de frente e uma menininha de vermelho, nada além do direito de todos terem uma pequena casa, com um jardim de frente e uma menininha de vermelho (como no poema de Vinícius de Moraes), mas agora tinha que me contentar com o gosto amargo da esperança que explodia, convulsionada, inundava minha cavidade bucal bloqueando a entrada de minhas glândulas salivares, deslocando minha arcada dentária, cerrando meus lábios e pondo em meu rosto uma expressão séria.

Deitava-me em frente a estátua de homens que marchavam a cavalo. Sob o sol nu, repousava nos ladrilhos fétidos da praça central, clamando por um Teseu, Aquiles, ou qualquer outro ser humano de fibra, paciência, orgulho e um tanto de boa disposição, por qualquer bom sentimento que me colocasse à frente da guerra de Troia. Eu era a goiaba esmagada no asfalto, o pescoço dado à guilhotina, a vibração bucal das cordas que morria em tons e semitons.

Os letreiros luminosos da cidade formavam anagramas, “cadey”, “dacey”, “aceyd”, todas elas mensagens subliminares de minha loucura que começavam à tomar forma, previsões paranoicas, planos de atentados terroristas, enquanto um vizinho me alertava sobre a chuva iminente e sobre o risco de ficarmos encharcados andando dessa forma à esmo. Estaquei em frente à uma loja cuja placa na porta de frente indicava “Closed” e que me convidava a entrada.

Do interior do prédio ouvia-se longínqua uma melodia misteriosa, familiar, errante, a nona sinfonia de Beethoven que me era agora ao mesmo tempo os restos de bolinho de madalena e uma fenda mortal entre dois mundos, que projetava na mente esferas azuis celestes e me mantinha estático, ditando o ritmo das sístoles e diástoles que teimavam em crepitar como restos de lenha calcinada.

Sob a chuva compreendi os limites de uma vida austera, a profundidade das bocas de lobo que infestavam a cidade, o destino hermético de José Arcádio Buendía que se colocava para mim como trajetória única, pensei que solidão, se fosse mesmo um conceito preciso, chamar-se-ia liquidão, pois no fundo, nada mais solitário do que uma vida sem paz. Abracei-me à um poste e adormeci, luzes de sirenes bombardeavam minhas costas enquanto eu, por minha parte, germinava em frente ao espelho.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Cena 01

Deslizes,
devaneios,
diretrizes,
enleios 

findou-se a pérola,
findou-se a dama,
findou-se a história,
findou-se o drama,
findou-se o personagem,
findou-se a trama

de tudo,
restou somente o homem,
diletante,simples, 
descaracterizado,
sem poderes,
sem pudores,
esvaziado,
ébrio sobre a terra,
irrealizado,
firme sobre a pedra,
portador do medo
e da distância




segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Lastros

Lastros,
Ossos metálicos,
pulmões de pedra,
mentes de aço,
a chuva verte pelos orifícios,
os fuzis choram noite à fora,
o mundo gira em descompasso


Não crer em nada,
nem nas revistas,
nem nos ambientalistas
nem nos empresários
nem nas grades de ferro
da janela do quarto,
nem na palavra dos homens,
nem nas palavras nobres
nem na autoridade do estado,


Faltam dias,
faltam guias,
sobram  rastros,
fazem do mundo a matéria,
fazem da vida a miséria
fazem do medo o mercado,
da solidão o credo,
da ilusão o concreto,
da desunião o quadro,
faltam meios,
faltam vias,
faltam lastros.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

A invenção de Darwin

A vida passa,
em descompasso,
no silêncio da rua,
no calor do abraço,
no barulho da pedra,
no frio do aço

Dia a dia,
segundo a segundo,
o mundo inventa os homens,
e os homens inventam o mundo,
sejam eles estéreis,
pobres, mártires, infecundos,
seja sua vida nobre,
seu corpo pobre,
sejam seus sonhos tudo

E de tão pouco ser,
tanto ainda serão,
seja o homem filho,
pai, irmão,
seja sua sina a febre,
amor, solidão,
seja seu rumo
a estrada,
dor, evolução,
sendo o mundo nada,
sendo tudo nada,
tudo é invenção.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Dédalo

Mãos firmes no corrimão da escada,
nada em volta é sólido,
lábios, latidos, partidos, em convulsão,
têmporas expostas, luzes, medo,
da fome, do frio que se aproxima,
do mundo que se agita ao redor,
da trilha amarga de pegadas
na estrada de lama.

Seria o mundo
um solstício aterrorizante,
inverno duro,
furacão que sopra
e apaga a graça do voo
da libélula?

Quem dera eu ser minotauro,
senhor dos caminhos,
dispensar oráculos,
ser livre de enigmas,
de terremotos,
da solidão do monte Olimpo
erguido em metal 
concreto e vidro,
praças, avenidas,
invenções.

E se não houvesse tempo,
se tudo fosse mental no lugar de concreto,
que assim fosse,
que o tempo se esvaísse
e deixasse o sangue dos homens livre,
que não mais fosse contado,
 venerado, medido,
e que nada mais o interrompesse.

Parem tudo! - Disse o Dédalo
Uma flor nasceu na rua,
foi atropelada por um carro
e se extinguiu

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Cidadania



Para Denis Pinho


Dar-te-ei tudo que tenho,

num lampejo, num sorriso,
fazendo de inferno a terra,
de falsidade o paraíso.

Varrerei tua calçada,

com atino e compromisso,
para que passes na levada,
nas mamas do estado omisso.

Abracar-te-ei,

fingirei-me de feliz,
sendo eu Antônio,
Homem,
tua puta, meretriz,
que de tanto não querer mais,
tive que dizer que quis.