Para meus amigo Denis Pinho e Bruno Furlanetto, que tanto me fazem pensar na vida.
O amanhecer colore a
grama em fúria, um verde errante, maduro, brutal. O vento íngreme
sopra na calçada enquanto troco passos e escrevo palavras. Não sei
se existe um espírito para a modernidade ou para o dia de hoje, sei
que se ergue em mim e em meus semelhantes uma nostalgia diária que
nos impele a sair de casa, e que nos devolve ao anoitecer para que
mofemos e minguemos como as chamas do sol de um meio dia exausto.
Olhar ao redor é ver
tudo aumentado, idílico, livre de impurezas, tudo que não sou eu
brilha, a namorada do desconhecido, o emprego do melhor amigo, a
tranquilidade do primo, a sorte do ganhador da Mega-Sena, tudo se
confunde em minha visão míope e limitada da vida humana.
Olhar para frente é
temer, é deixar que um amontoado de incertezas e inseguranças
invada a consciência, é permitir que um maremoto de reações
químicas e sinapses tomem o controle, é aceitar o fado da
guilhotina do mundo que fatia o presente sobre as promessas de um
futuro que nem se quer existe.
Olhar para trás não é
menos desconfortante, ver tudo que se foi, que simplesmente passou,
os amigos, os inimigos, os avós, os pais, a paixão, a adolescência,
a juventude. Talvez eu me torne um velho casmurro e desdentado que
anda pelas ruas da cidade à resmungar em silêncio, ou talvez um
lunático que grita palavras de ordem no meio de disparates, tenho
saudades de mim.
Sinto um aperto no
ombro, alguém que nunca vi me chama, estou parado no meio de uma
rua, de frente para um semáforo vermelho e rodeado por motoristas
raivosos que se pudessem me atropelariam sem exitar. Percebo por um
momento que o mundo não se resume a meu ser tênue e sua solidão,
que neste exato segundo há monges meditando no Tibete, crianças
nascendo nos hospitais, jovens sendo assassinados pelo tráfico ou
por policiais sedentos de sangue, senhores de meia idade embriagados
nos bares buscando uma fuga para suas vidas medíocres, percebo que
outros passam fome, que limpam os vidros dos carros para sobreviver,
que nem todos os quadros de Van Gogh são incandescentes e bucólicos,
e que alguns guardam uma simplicidade triste e achatada.
Um nó aperta minha
garganta e me sufoca enquanto termino de atravessar a rua e deixo a
via livre para a circulação dos automóveis. Como pude me esquecer
de tudo que não sou eu? Como pude abrir mão, espontaneamente, de
minha participação ativa no mundo? Seria essa a náusea a qual
sofre o personagem de Jean Paul Sartre? Seria esse o subsolo úmido e
apertado de Dostoyevski?
A realidade agora me
soa estranha, apartada, um lugar inóspito cheio de certezas frágeis
e pessoas aprisionadas em suas bolhas de sonho, plástico e silício.
Lembro-me agora da fala de Georg Simmel “ Não há lugar mais
solitário que uma multidão”. Seria esse o mal das metrópoles? Do
mundo atual? De meus olhos desacostumados com a luz?
Decido reforçar o
contato com o exterior, criar maior intimidade com as coisas,
estreitar o laço, compro um jornal, fico a par da vida alheia pelas
frases curtas e linhas borradas, sou culto, bem informado, o
protótipo do cidadão politizado. Mas que ritual estranho.
Não é o bastante,
todo o esforço empregado na leitura daquelas letras minúsculas só
me serviu para construir uma imagem de mim, mais polida, mas não
menos isolada, mais séria, mas descontínua, como se meu mundo agora
fosse parte daquela realidade de cores desbotadas impressas na folha
daquele jornal velho de hoje. Seria eu uma notícia? Um número?
Estatística? E quanto aos meus planos? Meu futuro? Meus sonhos? E
quanto ao direito dos outros terem planos, futuro, sonhos? Seria o
indivíduo fruto do reconhecimento mútuo, como dizia Hegel? Seriam
todas as relações entre os homens reguladas pela dialética
senhor-escravo? Teria sido Marx profeta ao ter anunciado a alienação
do homem perante o outro homem pelo próprio homem? Seria ele o
oráculo da felicidade pré fabricada, das vidas prontas, dos
alimentos congelados?
A vida para mim é uma
sombra que invade meus pensamentos, se silhueta firma, mas de
fisionomia pouco nítida. Dados de realidade se embaralham em minha
cabeça com esquemas teóricos, com letras de música, com
fotografias, com versos de Fernando Pessoa. “Eu não sou nada,
nunca serei nada, nem posso querer ser nada, a parte isso, tenho em
mim todos os sonhos do mundo...”
Acho que no fundo nada
é tão coerente ou tão sistemático quanto parece, acho que não há
fórmula e que no fim (se o fim existe) uma coisa puxa a outra e
assim vai. No fim talvez o que nos resta seja caminhar de olhos
fechados, sem vislumbrar uma única direção, pois o ontem, o hoje,
o amanhã e mesmo o outro, é tão incerto quanto todo o resto, e a
sensibilidade seja a única coisa que nos permita manter contato. E
no fim, talvez o fluxo que arrasta todas as pessoas, todas as vidas,
todas as coisas, seja esse mesmo, que começou com o amanhecer pondo
cor na grama e que terminará sabe-se lá onde.