quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Terminal

Terminal
Houve um tempo em que caminhar era tarefa simples, os passos cadenciavam-se naturalmente sobre as ruas retilíneas, sobre as declividades, sobre os corpos desfalecidos de goiabas maduras no asfalto, meu corpo era um trator, uma máquina de moer milhas.

Sentava-me à mesa com minhas meias frias, pratos de louça, talheres de plástico e deglutia uma refeição sóbria juntamente com sonhos, planos e perspectivas que se colocavam no caminho. Da radiola da sala ecoava um som fraco de violino e saxofone que logo se transmutaram em estrondos de terremotos e solavancos, estilhaçando as taças de vidro e gotas de vinho que pouco continham. Nada restava do sol além dos bolinhos de madalena sobre a mesa.

Os jornais falavam sobre ortodoxia econômica, controle da balança de câmbio, inelasticidade do mercado de insumos, de minha parte (mesmo tendo passado anos na faculdade de economia) nada fazia sentido, só a comida do prato que me escorria por entre os dedos das mãos, como a liquidez monetária de que falava o artigo de capa do folhetim de sábado, como as gotas de suor que me acompanhavam após uma noite de sono extremamente curta e perturbada por pesadelos onde me perseguiam vendedores de seguro, gerentes de banco e a ausência dos móveis de minha casa que começavam a se desfazer. Dedos ou dados, todos eram indicadores.

As tardes então eram todas frias e compridas, não em termos climáticos, mas estadísticos, dos sonhos do passado só sobrara a capacidade de sonhar, escondida entre os vãos do assoalho da sala de estar e temente da possibilidade de novos abalos . Setenta anos eu tinha, embora só tivesse vivido vinte e nove e os vincos em minha testa acentuavam-se independentemente de minha vontade, disposição de mudança, ou da melhora de minha artrite.

Nunca havia sido materialista, nunca até então havia querido mais do que uma pequena casa, com um jardim de frente e uma menininha de vermelho, nada além do direito de todos terem uma pequena casa, com um jardim de frente e uma menininha de vermelho (como no poema de Vinícius de Moraes), mas agora tinha que me contentar com o gosto amargo da esperança que explodia, convulsionava, inundava minha cavidade bucal bloqueando a entrada de minhas glândulas salivares, deslocando para trás minha arcada dentária, cerrando meus lábios e pondo em meu rosto uma expressão séria.

Deitava-me em frente a estátua de homens que marchavam a cavalo. Sob o céu nu, repousava nos ladrilhos fétidos da praça central, clamando por um Teseu, Aquiles, ou qualquer outro ser humano de fibra, paciência, orgulho e um tanto de boa disposição, por qualquer bom sentimento que me colocasse à frente da guerra de Troia. Eu era a goiaba esmagada no asfalto, o pescoço dado à guilhotina, a vibração inaudível das cordas que morria em tons e semitons.

Os letreiros luminosos da cidade formavam anagramas, “cadey”, “dacey”, “aceyd”, todas elas mensagens subliminares de minha loucura que começavam à tomar forma, previsões paranoicas, planos de atentados terroristas, enquanto um vizinho me alertava sobre a chuva iminente e sobre o risco de ficarmos encharcados. Estaquei em frente à uma loja cuja placa na porta de frente indicava “Closed” e que me convidava a entrar.

Do interior do prédio ouvia-se longínqua uma melodia misteriosa, familiar, errante, a nona sinfonia de Beethoven que me era agora ao mesmo tempo os restos de bolinho de madalena e uma fenda mortal entre dois mundos, que projetava na mente esferas azuis celestes e me mantinha estático, ditando o ritmo das sístoles e diástoles que teimavam em crepitar como restos de lenha semi-calcinada.

Sob a bátega compreendi os limites de uma vida austera, a profundidade das bocas de lobo que infestavam a cidade, o destino hermético de José Arcádio Buendía que se colocava para mim como trajetória única. Pensei que solidão, se fosse mesmo um conceito preciso, chamar-se-ia liquidão, pois no fundo, nada mais solitário do que uma vida sem paz. Abracei-me à um poste e adormeci, luzes de sirenes bombardeavam minhas costas enquanto eu, por minha parte, germinava em frente ao espelho

sábado, 9 de abril de 2016

O brilho da água
é insipido,
minha cama é dura
e os dias se encadeiam
como elos de uma corrente
metálica.

Já não sou capaz
de dar nome as coisas,
esse poema vai sem título,
o sujeito que passa na rua
me é desconhecido.

A chuva ameaça do céu
mas não cai,
o calor é estupido,
faz suar as costas
e avermelhar a face.

Tudo aponta para um
típico dia de verão,
mas é outono

fora e dentro de mim.

quinta-feira, 17 de março de 2016

A Frágil Dama

A frágil dama nasceu
e mal tem vinte anos

Nasceu sobre o pranto
de pais desconsolados
sobre o grito de órfãos
e desaparecidos

Pode não ser a mais bela,
de certo não foi perfeita,
mas era gente.

Mal tem vinte anos
e já querem desmembra-la
tão nova a coitada
e já querem molestá-la,
nem atriz é e já a querem
em um drama
de cinco atos

Quando a loucura veste a beca
é nosso sangue que escorre,
e nossa alma que berra,
é nosso peito que sufoca
quando o dia morre


e cai a noite.

quarta-feira, 2 de março de 2016

Nem todos tem a sorte
de acordar sob um céu cinza:
saltar dos sonhos
resmungando horas,
inundando a vida,
respingando luz
sobre os olhos.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Ser poeta,
ofício duro,
nome, título,
tiro no escuro

versar sobre,
versar sempre,
versar antes,
versar tudo.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Confissão


Já não posso dizer que estou sóbrio,
as pernas já me falham
e o ritmo da taquicardia só sobe.
Entre o hoje e o pra sempre
esvai-se a razão
fraqueja-me o sopro

desde a ultima vez que te vi
achando eu que seria pra nunca,
pra mais que fosse,
rebento depressivo da união

E onde estão nossos pés
caminhando em paralelo?
e onde estão nossas mãos dadas
nas ruas dos parques?

Veja bem,
o que condenso aqui
não é o lamento de uma vida
é um grito de desespero
que ecoa em cada osso,
em cada vertebra
do meu corpo.

É uma ânsia incontida,
que me arrebenta
o peito
e me impede
de comer

É um pranto
que cala a voz
e submerge
a alma
em rios de

lamentação

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

É gozado ser assim:
meio letra de música,
meio garrancho de criança
meio casa de pau-a-pique,
sem teto

ser um tanto adolescente
e outro tanto
velho

ter fome,
ter sede,
uma vontade louca
de dançar a noite toda
e ter sono

beijar de língua
infinitamente
enquanto olha o semáforo

mudando de cor